sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Vítima de racismo, jogador Tinga diz que trocaria títulos por igualdade entre as raças

- Jogador do Cruzeiro foi vítima de racismo em jogo no Peru
  • - Caso provoca indignação em presidente do rival Atlético-MG e goleiro do Real Garcilaso - pede desculpas



Tinga disputa a bola com Ramon Rodriguez, do Real Garcilaso. Jogador foi vítuma de racismo no Peru
Foto: Cris Bouroncle / AFP


Tinga disputa a bola com Ramon Rodriguez, do Real Garcilaso. Jogador foi vítuma de racismo no PeruCRIS BOURONCLE / AFP
RIO - Quando fala de si mesmo, ao diferenciar o ídolo do cidadão Édson Arantes do Nascimento, Pelé reforça os limites do homem diante do mito. Com o sobrenome e a afrodescendência do Rei do futebol, Paulo César do Nascimento, o Tinga, sentiu na pele que a nobreza do esporte ainda sofre a marcação criminosa do racismo. Hostilizado por boa parte do estádio, que reproduzia chiados de macacos sempre que pegava na bola, na derrota do Cruzeiro por 2 a 1 para o Real Garcilaso, anteontem, no Peru, pela Libertadores, o meioa de 36 anos reviu a trajetória de quem transformou o preconceito em orgulho. Abandonado pela sociedade na infância pobre numa periferia de Porto Alegre, a mobilização em sua defesa mostra que Tinga não está mais sozinho.
— Foi lamentável o episódio de racismo contra o jogador Tinga, do Cruzeiro, ontem, no Peru. Ao sair do jogo, Tinga disse que trocaria seus títulos por um mundo com igualdade entre as raças. Por isso, hoje, o Brasil inteiro está fechado com o Tinga. Acertei com a ONU e com a Fifa que a nossa Copa das Copas também será a Copa contra o racismo. Porque o esporte não deve ser jamais palco para o preconceito — afirmou a presidente Dilma Roussef, nas redes sociais, onde a expressão “fechado com Tinga” reverberou bem mais que o grito dos peruanos.
Um dos quatro filhos de uma faxineira, criado no bairro da Restinga, o jogador carrega as marcas da exclusão a começar pelo nome de guerra. Sem ter roupa nem alimentos suficientes para toda a família, restava o calor humano para enfrentar as noites em claro e as viagens diárias de uma hora de ônibus até encontrar no Grêmio seu porto alegre e seguro na capital gaúcha. Quando assinou seu primeiro contrato, com salários de R$ 2,5 mil, em 1997, chorou ao conhecer o trabalho da mãe. Embora o sacrifício dela tenha terminado ali, a sociedade continuou a produzir o lixo que ainda deixa o filho desamparado. Da periferia para o centro das atenções.
— A gente tenta esquecer, competir em campo. Fico chateado com isso em pleno 2014, um país tão próximo da gente, mas infelizmente aconteceu. Já joguei longe, joguei vários anos na Alemanha e nunca vi isso na minha vida — disse o jogador.
Conhecida pela condescendência com a barbárie nos estádios, a Conmebol está sendo pressionada pelo governo brasileiro a adotar uma sanção exemplar ao clube peruano, que tem sede na cidade de Cuzco, mas fez o jogo em Huancayo.
— Tinga tem todo o nosso apoio na luta contra o racismo, que, esperamos, será combatido com firmeza pela Conmebol — afirmou o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, em nota oficial.
Embora haja previsão no regulamento até para eliminação sumária, ou perda dos pontos do time mandante, a confederação jamais determinou sequer que um de seus filiados jogasse com portões fechados na Libertadores. Sob o guarda-chuva de um sistema que aumenta o número de competições e filiados para ver crescer seu capital político e financeiro, a Conmebol prefere proteger seus aliados aos preservar os princípios do futebol. Antes das ações, as palavras de repúdio foram contundentes.
Pelo Instagram, Neymar replicou mensagem publicada pela CBF “por um mundo sem racismo, sem preconceito e sem desrespeito”. Do presidente da Fifa, Joseph Blatter, aos colegas de profissão, a ampla reação incluiu um pedido de perdão do goleiro do Garcilaso, Juan Pretel, e serviu até para alimentar a a solidariedade e a ironia entre os rivais mineiros.
— Racismo na Libertadores?... Me tiraram o prazer da derrota do Cruzeiro. Lamentável! — disse no Twitter o presidente do Atlético-MG, Alexandre Kalil.
Vistas como abrigo para a intolerância que não mostra a cara, as redes sociais também servem para unir pessoas. Dentre as invenções do homem, como a energia nuclear e o vinho, a internet pode produzir saúde ou destruição, dependendo do uso que se faz dela. Meio de integração das diferenças, de acordo com a bandeira aberta pela Fifa em suas competições, o futebol também é uma arena onde o homem pode sublimar seu lado mais primitivo. Como nos rituais tribais, as multidões cantam para celebrar a desgraça alheia e tratar do oponente como inimigo. Embora seja um país miscigenado que idolatra jogadores negros, como Cubillas, o Peru fez coro com a intolerância. Antes de apontar o dedo para localizar as origens do racismo em algum fator externo, convém procurá-lo dentro de cada um
— É um reflexo da sociedade. As pessoas que vão ao estádio, no calor da emoção, deixam transparecer quem elas realmente são — disse o zagueiro Juan, vítima de atos semelhantes quando jogou na Itália. — Ninguém no mundo deveria ser julgado pela cor, sexo ou suas crenças.
Escudo em preto e branco
Primeiro historiador a registrar com orgulho da cultura nativa que a colonização espanhola tentava soterrar, Inca Garcilaso de la Vega dá nome ao time e a diversas instituições em Cuzco. Originalmente batizado como Gomez Suarez de Figueroa, registrou a força da civilização Inca a começar pela alcunha que adotou, assim como Tinga fez com seu bairro. Apesar das marcas da opressão, traços das arquiteturas Inca e espanhola se completam nas ruas de Cuzco. A complementariedade entre opostos, expressa na imagem em que a CBF reproduziu seu escudo apenas com a sobreposição do preto no branco, repete-se nos teclados do piano e nos grandes times do futebol mundial, em que todos os jogadores têm a mesma raça para vencer os rivais e o preconceito.
— Eu queria não ganhar todos os títulos da minha carreira e ganhar o título contra o preconceito, contra esses atos racistas. Trocaria por um mundo com igualdade entre todas as raças e classes — disse Tinga.
Descendente do rei negro, o meia busca a conquista que falta a Pelé, mais celebrado pelo talento do que pelas posições políticas. Mesmo que os punhos cerrados na comemoração do gol repitam o movimento black-power, falta estender a nobreza do craque aos limites do homem para a celebração da unidade. Diante do silêncio cúmplice, que tolera a violência para além do campo esportivo, a manifestação de estupidez precisa produzir vítimas para que a voz da sensatez e da humanidade sejam novamente ouvidas. (Globo Esporte)

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