Blog do Josias de Souza
Em meio a uma queda de braço com o Fisco, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal declarou ao blog: "A Receita Federal montou um aparato composto de pessoas que vestiram roupa de Polícia Federal e de Ministério Público."
Nas palavras de Gilmar, "o grupo realiza investigações policialescas, que nada têm a ver com a Receita". Numa alusão à Operação Lava Jato, o ministro afirmou: "O lavajatismo invadiu a Receita Federal. Criaram uma força-tarefa branca".
Funciona na Receita, desde maio de 2018, um grupo estruturado com o propósito de investigar agentes públicos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Ainda sob Michel Temer, quando o chefe da Receita era Jorge Rachid, foram à alça de mira dos auditores um lote de congressistas, autoridades governamentais, magistrados, procuradores e até servidores do próprio Fisco.
O grupo especial de fiscalização foi herdado pelo governo de Jair Bolsonaro. Jorge Rachid foi substituído no comando da Receita por Marcos Cintra. É contra esse pano de fundo marcado pela transição de um governo para o outro que Gilmar bombardeia a atuação do que chama de "força tarefa branca" da Receita.
Gilmar atribui a membros desse grupo especial a produção do documento que associou seu nome e o de sua mulher, a advogada Guiomar Mendes, a um contexto de "possíveis fraudes de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência".
O documento ganhou as manchetes há dez dias. Anota que "serão analisados o contribuinte Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, a mulher dele, a advogada Guiomar Feitosa Mendes, e seus relacionados (conexões com empresas, sócios, familiares)".
Na conversa com o blog, Gilmar afirmou que os autores do dossiê consideram-se "cães farejadores" do Fisco. Mas não passam de "gatos sem o mínimo preparo." Na definição do magistrado, "é gente que fala de lavagem de dinheiro sem saber do que se trata".
Em ofício datado de 17 de fevereiro, Gilmar pediu providências ao colega Dias Toffoli, presidente do Supremo, contra o que tachou de "abuso de poder". Queixou-se do vazamento e dos pendores criminais exibidos pelos auditores:
"…Para além da divulgação indevida desse documento a terceiros que não integram os quadros da Secretaria da Receita Federal, o que justifica cuidadosa apuração administrativa e criminal, fica claro que o objetivo da Análise de Interesse Fiscal possui nítido viés de investigação criminal e aparentemente transborda o rol de atribuições dos servidores inominados".
Acionado por Toffoli, o Ministério da Economia, de cujo organograma pende a Receita, decidiu apurar se houve ato ilícito dos auditores que apontaram a suposta fraude de Gilmar e Guiomar. Numa primeira nota oficial sobre o caso, a Receita torceu o braço dos algozes do supremo investigado:
"A Receita Federal tem como valor fundamental a proteção intransigente dos dados dos contribuintes e não pactua com o vazamento de informações ou com ilações de prática de crimes sem provas."
Na sequência, a nota do Fisco revelou-se dúbia. Sustentou uma coisa e o seu contrário. Numa frase, informou que "não há procedimento de fiscalização em desfavor dos contribuintes" Gilmar e Guiomar. Noutra, admitiu que a auditoria fiscal pode passar a existir, pois os achados preliminares "podem ou não resultar, de forma motivada, em abertura de procedimento de fiscalização."
Num trecho, a nota explicou que cabe aos seus auditores "combater fraudes fiscais", não "possíveis fraudes de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência". Noutro ponto, acrescentou que, "havendo indícios", os auditores devem, sim, elaborar "a competente representação para fins penais."
Ficou entendido que a Corregedoria da Receita providenciaria "a identificação" dos responsáveis pelo vazamento e consequente "responsabilização." Mas não ficou claro qual será o destino da investigação preliminar que envolveu Gilmar e sua mulher. Descerá ao arquivo ou servirá de matéria-prima para um procedimento formal de investigação? "Não sei em que pé ficou", disse Gilmar.
Conforme já foi comentado aqui, em contendas como essa que opõe um ministro do Supremo a auditores da Receita não há melhor remédio do que a luz do Sol. Gilmar disse concordar com o repórter. "Também sou adepto da luz do Sol. Mas é preciso jogar limpo. Sei como funciona esse jogo. Sou treinado. O que está por trás é o uso da Receita como polícia, para constranger pessoas. Assim começam as milícias".
"Nós fomos intimados a prestar informações sobre questões fiscais em novembro do ano passado", contou Gilmar. "Recebemos a intimação e entregamos todos os documentos no prazo determinado. Na época, chamou-nos a atenção que, nesta primeira intimação, eles faziam referência a um processo do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Diziam que as coisas estavam relacionadas."
Gilmar prosseguiu: "Nós fomos olhar o processo no Carf. Dizia respeito a uma borracharia do Acre. Nada tinha a ver com o IDP (Instituto de Direito Público, do qual o ministro é sócio). Avisei ao Jorge Rachid. Ele me disse que iriam providenciar uma nova intimação. Achei que era um mero erro. Vejo agora, com a divulgação desse documento, que estavam atrás de corrupção, ocultação de patrimônio, lavagem de dinheiro e tráfico de influência. Não acharam nada. Nem acharão. Não existe."
No documento que levou Gilmar Mendes a rodar a toga, os auditores do grupo especial da Receita escreveram que "o tráfico de influência normalmente se dá pelo julgamento de ações advocatícias de escritórios ligados ao contribuinte ou seus parentes, onde o próprio magistrado ou um de seus pares facilita o julgamento". Mais: "O escritório ou empresa ligada ao contribuinte também poderá estar sendo utilizada com o intuito de lavagem de dinheiro".
Noutro trecho, o documento realça que Guiomar, a mulher de Gilmar, "possui indícios de lavagem de dinheiro, tendo recebido valores de distribuição de lucros/dividendos em sua declaração de Imposto de Renda sem a devida correspondência na ECF, uma declaração de informações contábeis e fiscais do escritório de advocacia".
"Verificou-se ainda", acrescentaram os auditores, "distribuição de lucros/dividendos nos anos de 2014 e 2015, os quais deverão ser verificados se houve a efetiva prestação de serviços pela contribuinte em análise", no caso a advogada Guiomar Mendes. Daí a proposta de abertura de uma fiscalização.
Gilmar disse ter manuseado o papelório da Receita. Verificou que os autores "não exibem as mínimas condições para saber como funciona um dos maiores escritórios de advocacia do país". Referia-se à banca de Sérgio Bermudes, onde atua Guiomar Mendes.
"Eles fizeram uma pesquisa num site chamado Escavador e afirmam que a Guiomar atuou em 15 processos", afirmou o ministro, antes de indagar: "Por que não requisitaram ao escritório os dados oficiais? Conferiram a energúmenos uma missão de investigar situações policialescas, não informações de cunho fiscal."
Língua em riste, Gilmar bateu: "Os sujeitos não sabem nem mesmo como funciona um escritório de advocacia. Eles não têm noção dos detalhes: se o advogado leva a causa, tem um percentual; se ele participa da causa, o percentual é outro. E nada disso tem a ver com a participação societária, que é outra coisa. O espantoso é que estamos falando da elite da Receita. Se esse é o grupo de elite, fico imaginando como será a classe de baixo."
Na semana passada, Marcos Cintra, o novo mandachuva da Receita, declarou que os auditores fiscais precisam se ater às questões tributárias. Referindo-se ao caso de Gilmar Mendes, disse que "não compete à Receita Federal fazer a investigação que foi feita". Por quê? "O juízo de valor de um auditor deve se cingir a questões de interesse tributário e econômico. Se ele passa para uma outra área criminal não é competência dele".
Marcos Cintra se absteve de informar o essencial: afora a identificação dos vazadores, o que será feito do dossiê sobre Gilmar e Guiomar? A coisa será arquivada ou investigada? E quanto ao grupo especial criado no governo de Temer para varejar contribuintes ilustres dos três poderes, será lacrado ou prestigiado?
Essas interrogações são de grande pertinência. A essa altura, o envio do caso de Gilmar para o gavetão nacional dos assuntos pendentes não faria bem nem mesmo ao ministro. A eventual extinção do grupo especial que alvejou Gilmar seria uma emenda capaz de piorar o soneto, pois seguiriam para o mesmo gavetão os mais de 100 procedimentos abertos no Fisco contra contribuintes graúdos.
O "lavajatismo" de que fala Gilmar Mendes não precisa ser visto como algo necessariamente nefasto. Seria um desperdício se o Fisco não usasse em seu proveito a experiência que adquiriu atuando como força auxiliar nas operações anticorrupção. Somente em três dessas operações —Lava Jato, Ararath e Zelotes—, a Receita abriu 3.416 procedimentos fiscais. Juntos, resultaram em autuações que somam R$ 14,7 bilhões.
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