CNV: Violência sexual como método de tortura era comum no regime militar
Relatório da Comissão Nacional da
Verdade relata que crueldade de métodos era intensificada contra mulheres,
submetidas a estupros, desnudamento forçado, abortos provocados e separação e
tortura dos filhos por parte de agentes do Estado brasileiro
Por Agência Patrícia Galvão
A violência sexual
como método de tortura física e psicológica como política de Estado vitimou
mulheres e homens durante a Ditadura Militar, constituindo graves violações aos
direitos humanos e crimes contra a humanidade. Para elas, entretanto, a
crueldade era intensificada pelo fato de serem mulheres. Depoimentos das
sobreviventes colocam em evidência os múltiplos métodos usados pelos agentes da
repressão: estupros, humilhação ininterrupta, desnudamento forçado, abortos
provocados, separação dos filhos e tortura contra os companheiros e familiares.
O cenário desumano
é detalhado no capítulo “Violência sexual, violência de gênero e violência
contra as mulheres e crianças” do Relatório Final da Comissão Nacional da
Verdade (CNV), divulgado na última quarta-feira (10/12). O texto utilizou como
base a definição de “discriminação contra a mulher” da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW),
definida como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha
por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Lucia Murat contou
em depoimento à CNV em maio ter sido vítima de tortura sexual e que poderia ter
provocado sua própria morte caso tentasse se proteger. “Eu ficava nua, com o
capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as
mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava
mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu
ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços
para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás”.
Com base em
testemunhos como o de Lucia junto a investigações do grupo de trabalho
“Ditadura e Gênero”, a CNV constatou que a violência sexual praticada por
agentes públicos ocorria de forma disseminada, com registros que
coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado, constituindo instrumento
de tortura e violação dos Direitos Humanos.
“Inserida na lógica
da tortura e estruturada na hierarquia de gênero e sexualidade, a violência
sexual relatada por sobreviventes da ditadura militar constitui abuso de poder
não apenas se considerarmos poder como a faculdade ou a possibilidade do agente
estatal infligir sofrimento, mas também a permissão (explicita ou não) para
fazê-lo. Foi assim que rotineiramente, nos espaços em que a tortura tornou-se
um meio de exercício de poder e dominação total, a feminilidade e a
masculinidade foram mobilizadas para perpetrar a violência, rompendo todos os
limites da dignidade humana”, descreve o texto.
De acordo com o
Estatuto de Roma, citado pelo documento, a agressão sexual, escravidão sexual,
prostituição, gravidez e esterilização forçadas ou qualquer outra forma de
violência sexual de gravidade comparável constituem crimes contra a humanidade.
Práticas como
detenção arbitrária e tortura, por meio de choques nos órgãos genitais, golpes
nos seios e no estômago para provocar aborto ou afetar a capacidade
reprodutiva, introdução de objetos e/ou animais na vagina e/ou anus e choque
elétrico nos genitais foram cometidos contra as mulheres presas em diversos
locais: DEIC, DOI-CODI, DOPS, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do
Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, CISA, delegacias de polícia,
Oban, hospitais militares, presídios e quartéis. A violência sexual nesses
locais era empregada como arma.
As mulheres,
militantes ou não, incluindo religiosas, eram tidas como merecedoras de
violações pelos militares, formados numa ótica sexista e homofóbica. Para as
militantes, porém, a situação se agravava. Contra elas a tortura também era
empregada para arrancar delações sobre namorados, maridos e companheiros. Entre
os casais presos, era comum que a mulher fosse violentada na frente do
parceiro, imobilizado no pau de arara e também vítima de violência.
Márcia Bassetto
Paes relatou ao CNV a tortura sofrida quando foi presa com Celso Giovanetti
Brambilla pelo Deops/SP, em 28 de abril de 1977. “Na questão da mulher, a coisa
ficava pior porque… quer dizer pior, era pior para todo mundo, não tinha melhor
para ninguém, né? Mas [...] existia uma intenção da humilhação enquanto mulher.
Então, o choque na vagina, no anus, nos mamilos, alicate no mamilo, então… eram
as coisas que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso
Brambilla porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram,
obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da militância,
que seria um vínculo afetivo também, para tortura”.
A maternidade
também era usada como instrumento de desestruturação das mulheres. Ameaças aos
filhos recém-nascidos, injeções para cortar o leite das lactantes e separação
compulsória das crianças eram frequentes. “Mutilações nos seios privaram mães
de amamentar seus bebês. Úteros queimados com choques elétricos tornaram muitas
mulheres incapazes de engravidar ou de levar adiante uma gestação”, revela o
documento.
Com menos de dois
anos de idade, a filha de Eleonora Menicucci de Oliveira, atual ministra chefe
da Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República, então
militante, foi ameaçada pelo uso de choques elétricos, por Lourival Gaeta. “Um
dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo a sede do
Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de
fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e
ameaçavam dar choque nela. (…) Até depois de sair da cadeia, quase três anos
depois, eu convivi com o medo de que a minha filha fosse pega”.
Muitas vítimas
fatais da ditadura foram submetidas à violência sexual antes de desaparecer ou
de serem assassinadas. Foi o caso de Anatalia de Souza Melo Alves, que teve os
órgãos genitais queimados, antes de sua morte, em janeiro de 1973, no local em
que funcionava a Seção de Comissariado da Delegacia de Segurança Social da
Secretaria de Estado dos Negócios de Segurança Pública, em Pernambuco.
O relatório aponta também as marcas permanentes deixadas nas mulheres que sobreviveram à tortura: medo, vergonha, angústia e interferência nas decisões sobre os rumos para a própria vida.
O relatório aponta também as marcas permanentes deixadas nas mulheres que sobreviveram à tortura: medo, vergonha, angústia e interferência nas decisões sobre os rumos para a própria vida.
“O fato de os
crimes terem sido cometidos por agentes públicos encarregados de proteger a
sociedade, a vida e a integridade física de seus cidadãos os fez aumentar o sofrimento
da maioria dos sobreviventes, que ainda hoje padecem ao lidar com o estigma em
torno dos crimes sexuais, a indiferença da sociedade e a impunidade dos
violadores”, aponta o documento.
Essa é a realidade
de Cristina Moraes Almeida, presa pela primeira vez aos 19 anos, em 1969. Nas
sessões de tortura, sofreu mutilações na região do tórax e nos seios e teve a
perna estraçalhada por uma furadeira.
“Eu quero esquecer.
Mas eu te pergunto: qual é o profissional, na Psicologia, que vai apagar essas
marcas? Não tem. Não tem. E hoje em dia eles [torturadores] dizem: ‘eu não sei,
eu não vi, não me comprometa’. Olha, tacharem como torturador é um elogio.
Assassino em série, sem sombra de duvida. [...] Eu quero sair deste capítulo.
Porque eu estou vivendo como se fosse ontem”.
A feminista Maria
Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, foi presa na Operação Bandeirante (OBAN)
com o marido, César, em 1972, quando era militante política. Na prisão foi
torturada e teve a maternidade usada contra ela ao ter suas crianças, Janaína e
Edson, raptadas na Operação Bandeirante e levadas à sala de tortura para
presenciar a violência sofrida pelo casal na prisão. Ao ver o lançamento do
relatório final da CNV ela espera que a justiça seja feita para as vítimas.
“O estupro era usado
largamente. Muitas mulheres foram estupradas e diria que as que foram
assassinadas ou estão desaparecidas tiveram a violência sexual como forma do
inimigo, “o Estado”, de se declarar dono do corpo dela, com poder político e
social sobre ela. Durante a ditadura Militar, foi grande o número de depoentes
vítimas que denunciaram os estupros e nós do movimento feminista entendemos que
o estupro praticado por um agente do estado em pleno exercício da sua função
como uma ação repressiva deve ser considerada uma violação de direitos humanos
e crimes de lesa-humanidade, portanto, crimes imprescritíveis que devem ser
devidamente punidos como previsto pelos tratados internacionais”.
Foto de capa: Agência Efe
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