Feminicídio: perfil de mulheres vítimas de violência doméstica
O Brasil terminou o ano de 2019
com mais de um milhão de processos de violência doméstica e 5,1 mil processos
de feminicídio em tramitação na Justiça. Nos casos de violência doméstica,
houve aumento de quase 10%, com o recebimento de 563,7 mil novos processos. Os
casos de feminicídio que chegaram ao Judiciário cresceram 5% em relação a 2018.
O Ceará não fica fora dessa realidade, pelo contrário, está sempre perto do topo dos estados que mais enfrentam problemas com homicídio contra mulheres. Uma triste realidade, comprovada justamente no mês em homenagem a elas. Os dados estão no Painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Perfil
Há quatro anos, a Defensoria Pública do Ceará traça o perfil de mulheres vítimas de violência doméstica que buscam assistência no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), em Fortaleza e na Região do Cariri. O objetivo é entender como a violência se manifesta, conhecer o perfil da assistida e, a partir disso, pensar em políticas públicas com os demais atores da rede de proteção a essas mulheres.
No ano passado, os dados levantados pelo Nudem Fortaleza até novembro de 2019 mostram que o perfil da vítima se assemelha ao dos anos anteriores. São as mulheres com idade entre 36 a 45 anos (35%), pardas (63%), que estudaram até o Ensino Médio (37%), que sofrem todas as formas de violência, seja ela psicológica, física, sexual, patrimonial e moral, e só passaram a denunciar depois de mais de dez anos vivendo em um relacionamento abusivo.
O levantamento foi feito por amostragem com 573 mulheres que receberam assistência jurídica, psicológica e social da Defensoria. Mesmo inseridas no contexto familiar de violência doméstica, 273 das mulheres entrevistadas revelaram que não pretendem representar criminalmente o agressor, ou seja, 48%.
“Esse dado é preocupante. Elas sentem medo, porque os agressores ameaçam com relação à pensão e à guarda dos filhos. Então, elas chegam ao Nudem com o objetivo da separação, porque querem se livrar de uma vez por todas daquela situação, e realmente, não pensam em continuar com a denúncia. Mas é importante lembrar que a abertura da ação penal contra agressores se dá apenas partir de queixa feita pelo Ministério Público, sem obrigação de que a mulher tenha de tomar a iniciativa de denunciar o crime”, esclarece a defensora pública Jeritza Braga, supervisora do Nudem.
Postura
Para a coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica do CNJ, conselheira Maria Cristiana Ziouva, os dados sinalizam uma mudança de postura das mulheres. “As mulheres estão denunciando os agressores. Elas têm buscado o Poder Público, as delegacias, a Justiça, a Defensoria e têm pedido a concessão dessas medidas. Essa é uma ação importante das mulheres, que não aceitam mais viver uma vida de violência e terror e confiam no Judiciário para buscar a saída”.
Dados
São os ex-companheiros e os cônjuges, com 47% e 36%, respectivamente, os responsáveis pela agressão e, em 42% dos casos, eles já vivenciaram situação de violência na infância. A estatística sobre o perfil do agressor se mantém nas pesquisas anteriores, em 2018, 44,5% e em 2017, 46,84% eram ex-companheiros. Além disso, em 60% dos casos, a violência acontece em ambos os espaços (público e doméstico) e os principais fatores que potencializam são: o ciúmes, uso de álcool e drogas, traição e a separação.
De acordo com Jeritza Braga, “conhecer o perfil da assistida é uma forma de determinar os encaminhamentos que serão direcionados em cada caso e isso nos permite aperfeiçoar o serviço da Defensoria Pública. Já sabemos quem realmente são essas mulheres, elas têm rostos, nomes, endereços, filhos e, o pior, têm medo. E cada vez que essa mulher conta uma história triste, ela revive aquele momento de dor. Então, elas precisam de um equipamento forte, capaz de dar o suporte necessário para que ela consiga sair desse ciclo de violência e aqui temos escuta qualificada, individual e com respeito a sua intimidade e privacidade”, explica a defensora.
Lado mental
Em quatro anos seguidos do
levantamento, realizado de 2016 a 2019 pelo setor psicossocial da Defensoria
Pública, a violência psicológica segue sendo a mais presente. De acordo com a
psicóloga da Defensoria, que acompanha os casos, este talvez seja um dos
fatores pelo qual as mulheres vivem tantos anos no relacionamento abusivo e
demorem para fazer a denunciar.
“Foram 163 mulheres que, no ato do atendimento, revelaram ter passado mais de dez anos em situação de violência e só depois buscaram ajuda. Em outros 155 casos, elas passaram até cinco anos para buscar ajuda. Não é preciso ser agredida fisicamente para estar em um relacionamento abusivo e violento. Por ser de difícil identificação, a violência psicológica, na maioria dos casos, é negligenciada até por quem sofre – por não conseguir perceber que ela vem mascarada pelo ciúme, controle, humilhações, ironias e xingamentos”, explica a psicóloga Úrsula Goes.
“Percebemos que elas já passaram por todo o contexto agressivo de uma violência psicológica e moral, estão cansadas de seguir com o relacionamento, e tomam a decisão pela separação. Mas aí, o homem não entende isso, porque sempre se viu como dono da sua companheira, em uma relação de posse. E isso é preocupante, porque em muitos casos de feminicídio divulgados pela imprensa, você escuta dos familiares da vítima ou das autoridades que a violência ocorreu porque o companheiro não se conformava com a separação”, detalha Úrsula Góes.
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