Por Luciano Martins Costa em 22/02/2012 na edição
682
A Folha de S.Paulo publica na edição de quarta-feira de cinzas (22/2) reportagem de sua enviada especial à reunião da Associação Americana para o Progresso da Ciência, dando conta de que ainda neste ano será apresentado ao mundo o primeiro hambúrguer feito em laboratório. O texto, produzido em tom de almanaque de curiosidades, lembra a mais célebre “barriga” do jornalismo científico no Brasil, o famoso caso “boimate”, ocorrido em abril de 1983, quando a revista Veja publicou como sendo verdade uma brincadeira de primeiro de abril da revista semanal New Scientist, baseada em Londres.
No caso de Veja, houve um enorme equívoco provocado pelo
fato de que o editor não conhecia a tradição da publicação científica de brincar
com seus leitores no dia internacionalmente dedicado à mentira. O texto dizia
que dois biólogos de Hamburgo, na Alemanha, haviam protagonizado um “ousado
avanço da biologia molecular”, fundindo pela primeira vez células de animais com
células vegetais – as de um tomateiro com as de um boi. “Deu certo”, celebrava a
revista Veja.
A suposta sede da pesquisa, Hamburgo, e os nomes dos supostos
cientistas, que remetiam às denominações de duas cadeias de fast-food,
não foram suficientes para alertar a malícia do editor. O desmentido só veio
após dois meses, depois que todo o resto da imprensa brasileira já havia
transformado a “reportagem científica” em uma grande piada.
Questão central
No caso da Folha, não se trata propriamente de uma
“barriga”, mas de um tema sério espancado por critérios controversos de
edição.
O jornalismo científico é sempre um desafio para a imprensa
diária, principalmente quando faltam profissionais qualificados, ou quando as
redações se livram de seus especialistas.
O risco de transformar em mera curiosidade um tema controverso,
sobre o qual pesquisadores dedicam eventualmente toda sua vida, se multiplica
quando o próprio jornal que abriga esse material considera que precisa
interpretar e traduzir a informação especializada nos mínimos detalhes.
A redução de custos eliminou das redações os jornalistas
especializados, habituados à leitura de trabalhos científicos, e a busca da
leveza faz o resto do desserviço.
A rigor, não há graves erros de informação na reportagem da
Folha sobre as pesquisas em busca da produção artificial de carne
comestível. Nos relatos oficiais, publicados no site da Associação Americana para o Progresso da
Ciência, há referência a disputas entre entidades científicas pela
precedência na definição do melhor método para alcançar esse objetivo.
Mas, ao se concentrar na concorrência entre os cientistas, o
jornal acaba deixando de lado a questão central, que é a perspectiva de
esgotamento da capacidade humana de seguir produzindo animais suficientes para
abate nas próximas décadas.
Pensando no futuro comum
A reportagem sobre a busca do “hambúrguer de laboratório”
afirma, por exemplo, que se trata de uma meta “inusitada”, quando se sabe que há
grandes debates em conferências sobre a questão ambiental a respeito da
necessidade de criar uma alternativa para as grandes manadas de gado como forma
de suprir a necessidade de proteína da humanidade.
No mesmo encontro em que se divulgaram os resultados de estudos
sobre a carne artificial foram relatados avanços na melhoria genética de
vegetais e produção de alimentos em solos pobres e desérticos.
O centro dos debates entre os cientistas não é sobre quem produz
o primeiro bife ou o primeiro hambúrguer a partir de células-tronco extraídas de
músculo de boi. Trata-se de uma corrida para duplicar a produção mundial de
alimentos até 2050, quando seremos cerca de 9 bilhões de seres humanos no
planeta, porque já se sabe que, pelos métodos tradicionais de criação e abate, o
risco de uma crise alimentícia global é quase certo.
Os métodos de pesquisa mais promissores, aliás, não passam por
esse caminho, mas pela produção mais barata de proteína a partir de vegetais –
que a Folha chama de “carne de soja 2.0”.
Não é função da imprensa alarmar seus leitores sobre os riscos
de uma carestia no futuro próximo. Mas a divulgação de informações consistentes
que ajudem a mudar os hábitos de consumo pode contribuir para a consolidação de
uma nova consciência sobre a responsabilidade de cada pessoa na criação de um
futuro comum mais auspicioso.
(Observatório da Imprensa)
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