segunda-feira, 23 de março de 2015

Autoflagelo de adolescentes em Pernambuco

Adolescentes se autoflagelam em escola da Zona Norte do RecifeSecretaria de Educação investiga casos de automutilação entre alunas de colégio na Bomba do Hemetério. Um transtorno que assusta mães e "alenta" meninas que não sabem resolver de outra forma suas dores existenciais

Diário de Pernambuco

Sites, grupos fechados no Facebook e perfis pessoais nas redes propagam a
Sites, grupos fechados no Facebook e perfis pessoais nas redes propagam a "filosofia" do autoflagelo. Especialista diz que trata-se de uma via de expressão muito sofrida e que cria dependência. Foto:Facebook/Reprodução
No banheiro de uma escola estadual da Bomba do Hemetério, na Zona Norte do Recife, garotas se cortam longe dos olhos dos professores e pais. Com giletes, compassos e lapiseiras, não se intimidam diante das demais alunas. Ganham atestado de loucas. Em casa, muitas vezes os pais sequer percebem. "Antes, minha filha era alegre, brincalhona, cheia de vida. Hoje, ela é uma menina triste e amargurada. Sofro muito sem conseguir ajudar". O lamento de dona Amália (nome fictício) veio após outra mãe tê-la procurado para alertar. "Ela disse que a filha dela viu minha menina fazendo essas coisas. Tentei conversar, mas ela não quis me dizer. Meu filho disse que a viu chorando. Na escola disseram que era moda. E eu nem sei há quantas semanas ela corta os pulsos", desabafa. A filha de dona Amália está no primeiro ano do ensino médio, tem 16 anos e é acusada pelas colegas de sumir durante as aulas para se mutilar escondida
Sentir na pele a angústia que assola a mente está longe de ser apenas um dito popular. Muitos adolescentes e jovens buscam na automutilação a solução para seus tormentos mais íntimos. O que está na cabeça reflete no corpo. A dor ganha forma, cicatriz. Os cortes nos braços, pulsos e pernas ocultam um transtorno psicológico que, com a internet, conquista cada vez mais seguidores. E riscos. Vítimas de seus medos, os pacientes não conseguem controlar o impulso do autoflagelo. Muito mais do que chamar atenção, eles tatuam no próprio corpo um pedido de socorro.

Assustada, dona Amália mostra as fotos das pernas da filha, de 16 anos, que não conversa sobre o transtorno. Foto: Arquivo pessoal
Assustada, dona Amália mostra as fotos das pernas da filha, de 16 anos, que não conversa sobre o transtorno. Foto: Arquivo pessoal
Assustada, a mãe da estudante da Bomba do Hemetério diz ter procurado a direção da escola para pedir ajuda. "Eles falaram que não podem fazer nada. Mandaram eu dar um susto na minha filha. Dizer que vou levá-la para a polícia. Ela tem marcas nos braços e nas pernas. São tantas, é um massacre. Mas eu sei que ela não está sozinha. Outras meninas do colégio combinam tudo pelo Facebook. Dentro de casa, eu controlo. Longe, não tenho como impedir", afirma.

A Secretaria de Educação do Estado (SEE) informou à reportagem do Diarionão ter recebido qualquer denúncia sobre automutilação dentro da escola da Bomba do Hemetério. No entanto, encaminhou uma equipe para a unidade de ensino e investiga o autoflagelo entre os alunos. Dona Amália foi chamada para uma conversa na Gerência Regional de Educação. Enquanto isso, nas páginas pessoais no Facebook das estudantes, desabafos indicam que o transtorno está longe de ser superado: "Suas palavras me fazem sangrar", diz um post.

"Usava uma gilete como pingente do colar...era a minha segurança"
Ariel tem 17 anos. Mutilava-se desde os 14. Parou sem remédios, psicólogos ou terapias. Durante a conversa, pediu que seu relato fosse usado como exemplo para mostrar que, apesar das angústias, é possível controlar as emoções e viver longe das lâminas.

"Tudo começou quando eu tive uns problemas sérios na família. Meu pai bebia muito e batia na minha mãe. Meu irmão era viciado em drogas. Só que meu pai ficou doente e, de repente, descobrimos que ele tinha câncer. Não havia mais o que fazer. Ele morreu. Quase entro em depressão, ou entrei, não sei. Procurei alguém pra conversar, mas não encontrei. As pessoas me julgavam. Minha mãe escutou, mas não ajudou. Eu chorava e chorava. Me isolava cada vez mais. Já tinha conhecimento de alguns casos (de automutilação), mas achava idiotice. Pensava que só queriam chamar a atenção. Um dia eu estava com muita raiva e resolvi tentar. Usei um estilete escolar. Eu tinha 14 anos. Aliviou na hora. O problema é que minha dor sempre voltava e eu tinha que me cortar de novo. Fazia cortes cada vez mais profundos. Não sabia como me tratar. Então, me cortava pelo menos uma vez por semana. Usava uma gilete como pingente do colar. Ela estava lá porque eu poderia precisar a qualquer momento e em qualquer lugar. Era minha segurança.

Teve um dia que me cortei muito no pulso. Rompi uma veia. Passei uma semana no hospital. Mas não importava porque eu precisava daquilo para expressar a minha dor. Só parei com 16 anos. Parei porque contei para um amigo e ele não me deixou mais sozinha. Conversava o tempo inteiro e cuidava para que eu não fizesse. Ainda fiz escondido em casa muitas vezes. Minha mãe já estava desesperada. Todo mundo mandava eu parar, como se fosse fácil. As pessoas não conseguem entender o que tem dentro da gente. Claro que eu sabia que aquilo não estava me levando a lugar algum, mas isso só aumentava a vontade. Não é fácil. Procurei na internet depoimentos sobre quem conseguiu superar, li muito sobre autoestima e me abri com meus amigos. Aos poucos, fui aprendendo a lidar comigo mesma, graças a Deus. Fiz tratamentos na pele e também tirei algumas marcas. Algumas pessoas veem essas coisas nas redes sociais e acham legal, começam a fazer. Ninguém sabe como dói. Vai muito além da carne. Hoje, eu estou livre. Minhas cicatrizes mostram o que ainda está em mim, mas eu falo mais alto porque consegui superar".
Foto: Facebook/Reprodução
Foto: Facebook/Reprodução
 

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