segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Gostei, copiei, postei

Despudorada*

Raymundo Netto

“Não é possível isso. Que desaforo!”. Sacudia veemente o sonolento marido que dormia como se aquela fora a sua última noite. “Está ouvindo não, Queiroz? Os gritos dessa devassa, imoral, fingida?” Jandira estava com os nervos e ouvidos tomados pelos ais, uis e outras exclamações libidinosas da namorada do vizinho de prédio:

“Quer aparecer, só pode. E ele, se esqueceu de que aqui mora família? Quer sem-vergonhice, vai para um motel!”

Queiroz, mais para lá do que para cá, amainava: “Deixa, criatura... Que é que tu tens com isso?”.

Logo cedo, ela já compartilharia com as vizinhas a sua indignação. Algumas haviam ouvido, mas pensavam ser assalto, estupro ou outra costumeirice da rotina urbana. Mas não, era pior, era safadeza pura: “Uma afronta. Vamos deixar barato, meninas?”

Entretanto, como também da rotina, ninguém fez nada, resumindo-se à delícia da fofoca gratuita: “Criar confusão com vizinho? Deus me livre... Vai que, né?”

Tadeu, agora um afamado fornicador, passava pelo hall e corredores do condomínio inocente como um querubim, distribuindo respeitosos bons-dias sem desconfiar dos comentários belicosos: “Hummm...

Será que ele é tão bom assim? Não tem quem diga...”

Jandira, não conseguindo o apoio que esperava, tomaria as suas providências. À noite, grudou-se à janela e pôs-se a alardear gemidos, palavreados dos mais cabeludos e outras promiscuidades próprias do amor ardente de botequim. Queiroz estranhou: “Minha filha, o que é isso? Endoidou de vez? O povo quer dormir!”

“Quero saber, não”, asseverou, “ele gosta de grito, pois tome grito!”

E continuou a berradeira desatada, batendo pratos, chutando parede, numa zoada capaz de acordar o diabo: “Vai, Queiroz... Meu amor, ai, ai, ai... Sou tua, toda tua! Que homem...ahhhh”

Pela manhã, toda a vizinhança vinha falar com Jandira: “Aquela indecência não podia ser.” Afinal, a emenda saía pior do que o soneto: “Vocês não me ajudaram, então aguentem!”

Às noites seguintes, a vizinhança pediria ajuda na portaria, para o síndico, pediria à ONU, mas nada fazia calar a mulher que, frustrava-se, pois até então só não havia recebido queixas do Tadeu. Logo ele, o principal alvo.

Dias depois, um fato curioso se deu: não dormindo, diante do alvoroço lascivo e insistente de Jandira, os casais passaram a sentir despertar em si um calorzinho esquecido de alcova nupcial. Com pouco, uma nova gemedeira, pouco a pouco, corria assanhada e em coro pelo condomínio.

Jandira, em algum momento, até pensou ter conseguido, finalmente, adesão à sua causa, o que a fazia estranhar o silêncio e a ausência das vizinhas nas manhãs seguintes. Quando inevitável o encontro, elas passavam depressa, desviando ou baixando a cabeça na tentativa de disfarçar sorrisinhos contidos. Quando batia nas portas, sentia que os vizinhos se calavam, como se não houvesse ninguém em casa. “Talvez tivesse ido longe demais”, pensava a mulher.


Queiroz, naqueles dias, não conseguindo dormir, entocava-se todas as noites na casa da mãe. Naquele dia, porém, danada de solidão, Jandira trancou a porta da sala: “Hoje, você não sai!” Dito isso, jogou-se toda por sobre o marido tascando-lhe um beijo de juventude, penetrando as unhas de porcelana nas sobejas carnes do marido. Com pouco, era ela a gritar estardalhante e violentamente, em pleno deleite e felicidade, quebrando o braço da cadeira, o vaso da mesa de apoio, desimplantando o incisivo de Queiroz, enquanto ouviam pela janela a vizinhança: “Dááá-lhe, Queiroz!!!”

* Coluna do O POVO

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