Despudorada*
Raymundo Netto
“Não é possível isso. Que desaforo!”. Sacudia veemente o
sonolento marido que dormia como se aquela fora a sua última noite. “Está
ouvindo não, Queiroz? Os gritos dessa devassa, imoral, fingida?” Jandira estava
com os nervos e ouvidos tomados pelos ais, uis e outras exclamações libidinosas
da namorada do vizinho de prédio:
“Quer aparecer, só pode. E ele, se esqueceu de que aqui mora
família? Quer sem-vergonhice, vai para um motel!”
Queiroz, mais para lá do que para cá, amainava: “Deixa,
criatura... Que é que tu tens com isso?”.
Logo cedo, ela já compartilharia com as vizinhas a sua
indignação. Algumas haviam ouvido, mas pensavam ser assalto, estupro ou outra
costumeirice da rotina urbana. Mas não, era pior, era safadeza pura: “Uma
afronta. Vamos deixar barato, meninas?”
Entretanto, como também da rotina, ninguém fez nada,
resumindo-se à delícia da fofoca gratuita: “Criar confusão com vizinho? Deus me
livre... Vai que, né?”
Tadeu, agora um afamado fornicador, passava pelo hall e
corredores do condomínio inocente como um querubim, distribuindo respeitosos
bons-dias sem desconfiar dos comentários belicosos: “Hummm...
Será que ele é tão bom assim? Não tem quem diga...”
Jandira, não conseguindo o apoio que esperava, tomaria as
suas providências. À noite, grudou-se à janela e pôs-se a alardear gemidos,
palavreados dos mais cabeludos e outras promiscuidades próprias do amor ardente
de botequim. Queiroz estranhou: “Minha filha, o que é isso? Endoidou de vez? O
povo quer dormir!”
“Quero saber, não”, asseverou, “ele gosta de grito, pois
tome grito!”
E continuou a berradeira desatada, batendo pratos, chutando
parede, numa zoada capaz de acordar o diabo: “Vai, Queiroz... Meu amor, ai, ai,
ai... Sou tua, toda tua! Que homem...ahhhh”
Pela manhã, toda a vizinhança vinha falar com Jandira:
“Aquela indecência não podia ser.” Afinal, a emenda saía pior do que o soneto:
“Vocês não me ajudaram, então aguentem!”
Às noites seguintes, a vizinhança pediria ajuda na portaria,
para o síndico, pediria à ONU, mas nada fazia calar a mulher que, frustrava-se,
pois até então só não havia recebido queixas do Tadeu. Logo ele, o principal
alvo.
Dias depois, um fato curioso se deu: não dormindo, diante do
alvoroço lascivo e insistente de Jandira, os casais passaram a sentir despertar
em si um calorzinho esquecido de alcova nupcial. Com pouco, uma nova gemedeira,
pouco a pouco, corria assanhada e em coro pelo condomínio.
Jandira, em algum momento, até pensou ter conseguido,
finalmente, adesão à sua causa, o que a fazia estranhar o silêncio e a ausência
das vizinhas nas manhãs seguintes. Quando inevitável o encontro, elas passavam
depressa, desviando ou baixando a cabeça na tentativa de disfarçar sorrisinhos
contidos. Quando batia nas portas, sentia que os vizinhos se calavam, como se
não houvesse ninguém em casa. “Talvez tivesse ido longe demais”, pensava a
mulher.
Queiroz,
naqueles dias, não conseguindo dormir, entocava-se todas as noites na casa da mãe.
Naquele dia, porém, danada de solidão, Jandira trancou a porta da sala: “Hoje,
você não sai!” Dito isso, jogou-se toda por sobre o marido tascando-lhe um
beijo de juventude, penetrando as unhas de porcelana nas sobejas carnes do
marido. Com pouco, era ela a gritar estardalhante e violentamente, em pleno
deleite e felicidade, quebrando o braço da cadeira, o vaso da mesa de apoio,
desimplantando o incisivo de Queiroz, enquanto ouviam pela janela a vizinhança:
“Dááá-lhe, Queiroz!!!”
* Coluna do O POVO
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