ARTIGO: COMO HITLER DESMENTE OS COMENTARISTAS DA INTERNET
Entrevista feita com o ditador alemão em 1923 esclarece polêmica sobre o nazismo ser socialista
“Eu vou tirar o socialismo
dos socialistas”, disse o ditador Adolf Hitler, fundador e ideólogo do Partido
Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, abreviado por seus seguidores
como Nazi. Condutor de um dos regimes fascistas mais sanguinários da história,
Hitler e o nazismo provocaram a deflagração da Segunda Guerra Mundial (70
milhões de mortos) e do Holocausto (6 milhões de judeus assassinados), duas das
maiores tragédias da humanidade.
Nos últimos dias,
uma polêmica transnacional tomou conta da internet. Milhares de internautas
passaram a debater ferozmente sobre se o partido político de Hitler era ou não
de esquerda. E a motivação do arranca-rabo virtual foi a mais inócua possível:
um vídeo publicado nas redes sociais da embaixada alemã no Brasil, com o
objetivo de se posicionar contra uma série de demonstrações neonazistas feitas
em Chemnitz, no leste da Alemanha, ao longo do último mês.
Trata-se de um ato
de repúdio natural, vindo de um governo que trabalha ativamente contra a
proliferação da ideologia ariana em seu território e opera sob uma Constituição
que criminaliza o nazismo e a negação do Holocausto. “Devemos nos opor aos
extremistas de direita, não devemos ignorá-los, temos de mostrar nossa cara
contra neonazistas e antissemitas. (...) Quem protesta contra os nazistas não é
de esquerda. É normal”, disse o ministro de Relações Exteriores da Alemanha,
Heiko Maas.
Ao tomarem
conhecimento da afirmação, grupos de brasileiros exaltaram-se ao contestá-la.
Sem se importarem com as evidências da historiografia e da ciência política do
século XX, os comentaristas afirmaram que o nazismo era uma ideologia de
extrema-esquerda, parceira do comunismo soviético e chinês. Apenas mais um dos
filhos de ideologia marxista.
E isso não
poderia ser mais óbvio, disseram ao desinformado governo alemão: o nome do
partido — “Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei”, ou, em bom
português, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães — era a
prova indiscutível. Hitler e seus correligionários se autodeclaravam
socialistas, ora bolas! Era, para eles, um apagamento dos crimes cometidos pela
esquerda.
A melhor resposta aos
críticos brasileiros foi encontrada pelo escritor Samir Machado, ao divulgar entrevista de Hitler em 1923 ao jornal britânico The
Guardian . Nela, Hitler destila seu ódio contra a esquerda,
colocando toda a culpa da falência alemã da República de Weimar no bolchevismo
implantado em sua nação. O repórter George Sylvester Viereck pergunta a Hitler:
“Por que você se define como um nacional-socialista se o programa de seu
partido é a própria antítese do que é comumente associado ao socialismo?”.
“Socialismo”,
Hitler responde belicosamente, baixando sua xícara de chá, “é a ciência de
lidar com o bem comum. Comunismo não é o socialismo. Marxismo não é socialismo.
Os marxistas roubaram o termo e confundiram seu significado. Eu retirarei o
socialismo dos socialistas. O socialismo é uma instituição alemã, do arianismo
antigo. Nossos ancestrais alemães possuíam certas terras em comum. Cultivavam a
ideia do bem comum. O marxismo não tem o direito de se disfarçar de socialismo.
O socialismo, ao contrário do marxismo, não repudia a propriedade privada. Ao
contrário do marxismo, não envolve a negação da personalidade; em vez de
marxista, ele é patriótico. Nós poderíamos nos chamar Partido Liberal.”
É um mito tanto
dizer que todo regime autoritário e de Estado centralizador é de esquerda, dado
o tamanho inflado do governo federal, quanto afirmar que governos de direita
são adeptos do Estado mínimo liberal. Basta olhar para a experiência da maioria
das ditaduras militares da América Latina, confessamente conservadoras e
anticomunistas, mas que ainda assim não prescediam de um Estado forte e que
gastavam muito.
Acreditar que o
nacional-socialismo hitlerista pudesse ser de esquerda é um erro equivalente a
aceitar que a República Democrática da Coreia do Norte seja um regime
democrático e plural.
A fala de Hitler e
a precisa pergunta do repórter poderiam ter dado um xeque-mate à questão se os
comentaristas de internet não tivessem ido além: alguns negaram a existência do
Holocausto, crime genocida com incontáveis provas cabais das fontes mais
diversas.
Oficiais nazistas
foram condenados criminalmente pelo massacre — com um desses julgamentos
seminalmente descrito por Hannah Arendt em sua série de reportagens Eichmann em
Jerusalém, em que explicava a “banalidade do mal” —; museus em homenagem às
vítimas existem em diversas cidades alemãs e polonesas, sendo o mais notório o
do campo de concentração de Auschwitz, onde a estrutura e a memória do genocídio
são mantidas como alerta; e milhares de sobreviventes descreveram seu suplício
ao longo do século passado, muitos deles inclusive radicados aqui no Brasil.
A negação ao
Holocausto é um ato de fé na ignorância. Como escreveu Morten Høi Jensen em um artigo para a Los Angeles Review of Books :
“Hitler não tinha imaginação; ele era incapaz de encurtar a distância de si
próprio com as outras pessoas e por isso não podia se ver no lugar delas. Sua
autoidentidade era desinibida, permitindo que ele se escondesse por trás do
fantasmagórico ‘nós’ — o Volk alemão —, que era como ele referia a si mesmo.
Era o abismo decisivo em sua personalidade, o pré-requisito que o permitiu
orquestrar o maior e mais eficiente genocídio da história humana”.
Jensen cita o escritor
norueguês Karl Ove Knausgård para explicar que o “fortalecimento do nós e o
enfraquecimento do eu” permitia a redução da resistência contra a gradual
desumanização e exclusão dos que não eram “nós” — nesse caso, os judeus.
A empatia pelo
sofrimento do próximo talvez seja sentimento ausente entre os comentaristas da
internet que negam o Holocausto. Se os livros de história são de difícil
absorção para alguns deles, talvez pudessem buscar em filmes tal empatia:
Shoah, Noite e neblina, Filho de Saul, A lista de Schindler ou A vida é bela
são obras acessíveis. A menos que se viva no reino do absurdo.
Fonte: Época
Fonte: Época
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