‘Congresso gangsterizado não tem legitimidade para
julgar sequer síndico de prédio’
Em artigo na
Folha de S.Paulo, o professor e filósofo Vladimir Safatle critica o processo de
impeachment da presidente Dilma Rousseff.
A
crer no andar atual da carruagem, teremos um golpe de Estado travestido de
impeachment já no próximo mês. O vice-presidente conspirador já discute
abertamente a nova composição de seu gabinete de “união nacional” com velhos
candidatos a presidente sempre derrotados. Um ar de alfazema de República Velha
paira no ar.
O
presidente da Câmara, homem ilibado que o procurador-geral da República definiu
singelamente como “delinquente”, apressa-se em criar uma comissão de
impeachment com mais da metade de deputados indiciados a fim de afastar uma
presidenta acusada de “pedaladas fiscais” em um país no qual o orçamento é uma
mera carta de intenções assumida por todos.
Se
valesse realmente este princípio, não sobrava de pé um representante dos
poderes executivos. O que se espera, na verdade, é que o impeachment permita
jogar na sombra o fato de termos descoberto que a democracia brasileira é uma
peça de ficção patrocinada por dinheiro de empreiteiras. Pode-se dizer que um
impeachment não é um golpe, mas uma saída constitucional. No entanto, os
argumentos elencados no pedido são risíveis, seus executores são réus em
processos de corrupção e a lógica de expulsar um dos membros do consórcio
governista para preservar os demais é de uma evidência pueril. Uma regra básica
da justiça é: quem quer julgar precisa não ter participado dos mesmos atos que
julga.
O
atual Congresso, envolvido até o pescoço nos escândalos da Petrobras, não tem
legitimidade para julgar sequer síndico de prédio e é parte interessada em sua
própria sobrevivência. Por estas e outras, esse impeachment elevado à condição
de farsa e ópera bufa será a pá de cal na combalida semi-democracia brasileira.
Alguns
tentam vender a ideia de que um governo pós-impeachment seria momento de grande
catarse de reunificação nacional e retomada das rédeas da economia.
Nada
mais falso e os operadores do próximo Estado Oligárquico de Direito sabem disto
muito bem. Sustentado em uma polícia militar que agora intervém até em reunião
de sindicato para intimidar descontentes, por uma lei antiterrorismo nova em
folha e por um poder judiciário capaz de destruir toda possibilidade dos
cidadãos se defenderem do Estado quando acusados, operando escutas de
advogados, vazamento seletivo e linchamento midiático, é certo que os novos
operadores do poder se preparam para anos de recrudescimento de uma nova fase
de antagonismos no Brasil em ritmo de bomba de gás lacrimogêneo e bala.
Uma
fase na qual não teremos mais o sistema de acordos produzidos pela Nova
República, mas teremos, em troca, uma sociedade cindida em dois.
O
Brasil nunca foi um país. Ele sempre foi uma fenda. Sequer uma narrativa comum
a respeito da ditadura militar fomos capazes de produzir. De certa forma, a
Nova República forneceu uma aparência de conciliação que durou 20 anos. Hoje
vemos qual foi seu preço: a criação de uma democracia fundada na corrupção
generalizada, na explosão periódica de “mares de lama” (desde a CPI dos anões
do orçamento) e na paralisia de transformações estruturais.
Tudo
o que conseguimos produzir até agora foi uma democracia corrompida. A seguir
este rumo, o que produziremos daqui para a frentes será, além disso, um país em
estado permanente de guerra civil.
Os
defensores do impeachment, quando confrontados à inanidade de seus argumentos,
dizem que “alguma coisa precisa ser feita”. Afinal, o lugar vazio do poder é
evidente e insuportável, logo, melhor tirar este governo. De fato, a sequência
impressionante de casos de corrupção nos governos do PT, aliado à perda de sua
base orgânica, eram um convite ao fim.
Assim
foi feito. Esses casos não foram inventados pela imprensa, mas foram
naturalizados pelo governo como modo normal de funcionamento. Ele paga agora o
preço de suas escolhas.
Neste
contexto, outras saídas, no entanto, são possíveis. Por exemplo, a melhor
maneira de Dilma paralisar seu impeachment é convocando um plebiscito para
saber se a população quer que ela e este Congresso Nacional (pois ele é parte
orgânica de todo o problema) continuem. Fazer um plebiscito apenas sobre a
presidência seria jogar o país nas mãos de um Congresso gangsterizado.
Em
situações de crise, o poder instituinte deve ser convocado como única condição
possível para reabrir as possibilidades políticas. Seria a melhor maneira de
começar uma instauração democrática no país. Mas, a olhar as pesquisas de
intenção de voto para presidente, tudo o que a oposição golpista teme
atualmente é uma eleição, já que seus candidatos estão simplesmente em queda
livre. Daí a reinvenção do impeachment.