Enlouquecer é um risco que todos nós corremos nesses dias conturbados de guerra urbana, política, consumista, social, em que não sobra tempo para ser feliz, gentil e solidário. Se isso acontecer, nem mesmo usuários de planos de saúde estarão livres de ir parar no Hospital da Tamarineira. Com o fechamento dos manicômios, tornou-se o único porto a abrigar a emergência dos refugiados da esquizofrenia, dependência química, depressão…Apesar dos avanços conquistados a partir da década de 1990, quando começaram a surgir as residências terapêuticas e os centros de atenção psicossocial, a política de saúde mental parece estagnada em Pernambuco, com medidas tímidas e lentas, do Estado e dos municípios. A situação de penúria e calamidade, que vem sendo denunciada desde a semana passada por trabalhadores do Ulysses Pernambucano, vai além da crise estadual com terceirizados. Em nota divulgada ontem, o Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial, formado por militantes da reforma psiquiátrica, culpa o modelo de gestão do Estado e a falta de investimento sistemático na saúde mental. De fato, o empenho para construir novos hospitais e UPAs não foi sentido na saúde mental. Por que não foram abertos leitos psiquiátricos nos hospitais gerais e regionais? Por que as negociações e desenhos de rede traçados com prefeituras não se concretizaram em tempo hábil? Não dá para atribuir tudo à crise do SUS.
Leia na íntegra a nota do Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial de Pernambuco, formado por trabalhadores da área e demais ativistas da reforma psiquiátrica:
Nem um passo atrás, manicômio nunca mais!
Há décadas levantamos a bandeira e vamos às ruas lutar por uma sociedade sem manicômios. Reafirmamos o que foi expresso na Carta de Bauru, em 1987, que estas instituições são verdadeiros mecanismos de opressão na nossa sociedade. Acompanhamos o estado brasileiro afirmar que o hospital psiquiátrico só seria o último recurso utilizado e que seria descredenciado do Sistema Único de Saúde progressivamente, até, mais recentemente, não incorporá-lo em suas Redes de Atenção Psicossocial. Contudo, ainda existem aproximadamente 23 mil leitos psiquiátricos do SUS em 166 hospitais no país e os desafios não param por aí, pois para que a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial aconteça tal como defendemos precisamos do fortalecimento de toda a rede de serviços de saúde (que vai da Estratégia de Saúde da Família ao SAMU) e de uma ampliação dos serviços substitutivos (CAPS, Residências Terapêuticas, Unidades de Acolhimento, Consultório de Rua, Centros de Convivência, Leitos em Hospitais Gerais) para que a relação da loucura com a sociedade possa ser transformada e as pessoas tenham o direito de serem cuidadas com responsabilidade, em liberdade, nos seus territórios, com a manutenção de seus vínculos e desejos, ocupando a cidade com todas as diferenças que devem caber nela.
Apesar de muitas vitórias, há anos observamos o desinvestimento na saúde pública e o crescimento dos setores privados na saúde. O sucateamento, a fragilização decorrente das terceirizações, o subfinanciamento, a precarização das condições de trabalho são frutos de decisões políticas equivocadas, visando a mercantilização da saúde pelo próprio estado. Na Política de Saúde Mental convivemos com o desafio de criticar a insuficiência do que está sendo implementado sem que tais posicionamentos não sejam capturados pela defesa da manutenção dos hospitais psiquiátricos por grupos extremamente conservadores que foram beneficiados durante décadas pelo mercado da segregação e que hoje resistem e se reinventam através de Comunidades Terapêuticas, de Internações Compulsórias e Redução da Maioridade Penal.
O povo pernambucano há muito sofre pela falta de prioridade dada à atenção a sua saúde, porém este ano estamos assistindo uma situação de total calamidade. Um modelo de gestão ineficiente e corrupto, a ausência de transparência nos repasses financeiros às Organizações Sociais, o endividamento do estado pela prioridade das grandes obras explodem hoje em notícias cotidianas de paralisações de trabalhadores e encerramento de atividades por ausência de condições mínimas de atendimento, que vão desde o não pagamento salarial até a falta de insumos básicos como luvas e medicamentos.
Na última semana, evidenciaram-se também as precárias condições do Hospital Ulysses Pernambucano (onde também está localizado o Serviço de Emergência Psiquiátrica, único do estado) diante da ausência de medicações, higiene e segurança. Este panorama culminou com uma funcionária da instituição sendo agredida por uma usuária. Registramos aqui nossa solidariedade e estimas de pronta recuperação às duas vítimas da história: a funcionária e a usuária. Aguardamos que o verdadeiro e perigoso agressor sofra as consequências dessa ação nefasta: o governo do estado de Pernambuco. Defendemos a dignidade da nossa população e exigimos que enquanto esse hospital exista ele possa oferecer um tratamento adequado, pois a Reforma Psiquiátrica defendida não será feita à custa de mais sofrimento e desassistência. Porém reafirmamos que tal situação não é fruto dos fechamentos dos manicômios, essa situação é consequência de um desinvestimento sistemático no SUS e na Política de Saúde Mental que não constrói a contento todo o projeto defendido por trabalhadores, usuários, familiares e militantes defendidos nos espaços de controle social e participação social. Denunciamos as condições de atendimento do Hospital Ulysses Pernambucano e exigimos que o estado tome providências urgentes, investindo na Rede de Atenção Psicossocial pública que se encontra abandonada. Nos unimos aos demais movimentos populares e defendemos que as lutas pelas Reformas Sanitária e Psiquiátrica sejam associadas à defesa de uma Reforma Política através de uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político para que o povo possa criar novas formas de incidir sobre os rumos do nosso país, evitando que a indústria farmacêutica, os planos de saúde privados e as grandes empresas continuem a ser nossos supostos representantes.
Pernambuco, 27 de agosto de 2015
Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades
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