Novo Recife ou Estado Novo?
Por Noelia Brito, advogada e procuradora do Recife
Algumas medidas capitaneadas pelo secretário João Braga, a mando do prefeito Geraldo Julio (PSB), têm causado desgastes a sua gestão junto aos movimentos sociais e aos defensores dos direitos humanos, mas, por outro lado, têm agradado em cheio àqueles que sonham, há tempos, com a implantação de uma política higienista na cidade.
São remoções de camelôs, de feirantes, enfim, moradores e população de baixa renda que não se enquadrem no seu modelo moderno de cidade, no qual se encaixam, à perfeição, Torres e arranha-céus autorizados a subir no centro da cidade, com a alteração gritante das feições originais desses cenários, até então caríssimos ao patrimônio histórico e cultural da capital pernambucana e que desta sempre foram referência internacional.
O processo de gentrificação, portanto, tem contado com a total cumplicidade da gestão Geraldo Júlio, a ponto de referido processo parecer mesmo ser o mote, a diretriz da sua política de urbanismo, a cada dia com mais feições higienistas.
O higienismo não é um fenômeno novo, muito menos no Recife. Aliás, um estudo da historiadora Jacqueline de Cássia Pinheiro Lima, para a Revista Espaço Acadêmico, mostra que durante o Estado Novo, o Recife, juntamente com o Rio de Janeiro, foi alvo de uma ação orquestrada de remoção de favelas e mocambos cujo propósito era, acima de qualquer outro, o de reeducar e readaptar os moradores desses aglomerados, aos padrões comportamentais esperados de um cidadão do “estado novo”, nos moldes traçados pela ditadura Vargas.
Os moradores eram, então, transferidos para áreas chamadas de Parques Proletários Provisórios, onde não mais atrapalhariam o “progresso da cidade”, deixando de “manchar-lhe” a imagem com sua visão “degradante”.
Os mocambos recifenses sempre foram associados, segundo Gilberto Freyre, a um modo de vida marginal. De início, foram associados aos quilombos, depois, como locais de moradia de escravos e destinado aos negros, aos marginalizados socialmente e, consequentemente, à insalubridade e ao atraso cultural.
A ação higienista contra os mocambos recifenses, durante o Estado Novo, chegou ao ponto de ser criada uma Liga Social Contra o Mocambo, sob a liderança do interventor Agamenon Magalhães e cujo propósito era destruir esse tipo de habitação. José Tavares Correia de Lira conta que além de eliminar o mocambo da paisagem, a ação higienista do Estado Novo também previa eliminar o próprio morador da vida na cidade, transferindo-o para colônias agrícolas, pois consideravam-no uma ameaça à integridade higiênica da capital.
No Recife, então, conta Correia de Lira, estabeleceu-se uma política de exclusão do centro da cidade de tudo que fosse contra o projeto estético da moderna metrópole, que Agamenon Magalhães, o interventor colocado pelo ditador Getúlio Vargas, queria impor.
Hoje, o que vemos no centro do Recife, pela ação do prefeito Geraldo Julio e seu Secretário de Controle Urbano, João Braga, não difere muito da ação perpetrada pelo interventor varguista, Agamenon Magalhães. Aliás, mal comparando, se pensarmos como o prefeito foi conduzido à prefeitura pelo governador Eduardo Campos, como o técnico missionário salvador da pátria, até nisso lembra Agamenon Magalhães, que foi escolhido, por Getúlio Vargas, depois de mostrar serviço nos Ministérios do Trabalho e da Justiça, para tomar conta da cidade e erradicar os males que “atravancavam o progresso”.
Mas quem pensar que o higienismo é coisa de Geraldo Júlio engana-se mais ainda. Ele também cumpre ordens, assim como Agamenon cumpria ordens de Getúlio. Para se ter uma ideia do caráter higienista do projeto de poder de Eduardo Campos não precisamos ir muito longe. Basta lembrarmos da extinção do sagrado direito de nascer, decretado por Eduardo, em Fernando de Noronha. Lá, em Noronha, gente não pode nascer. Só o que pode nascer é empreendimento turístico para desfrute e lucro de empresários.
Nem maternidade funciona em Noronha. Se houver uma emergência dessa natureza, a paciente tem que ser deslocada para o continente correndo todos os riscos, pois o Estado não pode, ele mesmo, correr o risco de que mais ninguém nasça do paraíso de Fernando de Noronha e adquira os direitos de nativo do lugar.
O último nascimento registrado em Fernando de Noronha foi em 2010 e ainda assim porque a mãe escondeu a gravidez. De outra forma teria sido obrigada a deixar a ilha como ocorre com todas as demais gestantes em Fernando de Noronha que, no sétimo mês de gestação, têm que ir morar no continente, mesmo que não tenham nenhum parente ou aderente para assisti-las. Segundo o governo, a medida visa impedir a explosão populacional em Noronha, de modo a preservar aquele paraíso ecológico da ação predatória dos nativos, que tem em torno de 3,5 mil habitantes e recebe cerca de mil turistas por dia.
É que quem nasce em Noronha, adquire o direito de morar lá pelo resto da vida e sem pagar as caríssimas taxas de permanência. É isso que o governo não quer. Dos cerca de 3,5 mil habitantes de Noronha, 2,6 mil são nativos. A política higienista do governo Eduardo Campos, a pretexto de controlar a explosão demográfica no arquipélago cria a desumana situação pela qual os pais nativos não podem criar seus próprios filhos, pois, evidentemente, não têm como arcar com quase R$ 4 mil, por mês, de taxa de permanência para cada um deles. A solução é entregar os filhos para outros criarem no continente ou então deixarem definitivamente a ilha.
Enquanto isso, o governo não vê problema no livre acesso aos turistas, desde que possam pagar as taxas e a hospedagens em resorts de luxo como a pousada Maravilha que já pertenceu ao apresentador Luciano Huck, mas que desde 2009 a repassou ao marqueteiro e banqueiro Antônio Lavareda, dono de 60% do negócio. Os outros 40% ficaram com o empresário José Gaudêncio.
O governo também não vê problema na recente interdição da praia do Cachorro, em Noronha por causa de um esgoto estourado da Compesa.
Ao mesmo tempo em que expulsava os nativos, para preservar sua ação devastadora, o governo Eduardo também não viu problema em acumular toneladas de lixo produzido pelos turistas que visitavam a Ilha. Foi preciso uma série de denúncias para que cinco anos de lixo acumulado fossem removidos da ilha, o que só começou a acontecer em 2012. Foi registrado, ainda, um aumento no número de pousadas e turistas, o que eleva o volume de lixo. Fernando de Noronha produz entre 180 e 200 toneladas de lixo por mês. Parte é tratada no arquipélago e o restante é levado para o continente.
Pelo menos 400 toneladas de lixo não podem ser removidas do arquipélago e grande parte desse lixo é composto por óleo que não pode ser reutilizado, gerando risco de vazamentos e contaminação do solo.
Para se ter uma ideia do avanço do turismo em Noronha, a frota de veículos local praticamente dobrou entre 2001 e 2013.
Noronha emite por ano 32.310 toneladas de CO2 equivalente. Valor superior à média anual per capita no Brasil, que é de 2,3 toneladas. Os principais fatores que tornam Noronha um paraíso do efeito estufa são o transporte aéreo, a geração de energia, o transporte marítimo e a produção de resíduos, todos intimamente ligados ao turismo. Mas o que se proíbe é o direito de nativos criarem seus filhos na ilha. Se isso não for higienismo, bem, do que se trata, então?
Está claro e cristalino, como as águas de Noronha que o turismo predatório ainda não conseguiu contaminar, que está em curso na cidade uma Nova Política, sim, mas se trata da mesma “nova política” que Agamenon Magalhães trouxe com o Estado Novo: higienismo mascarado de modernidade.
Semana passada, aliás, o Conselho de Desenvolvimento Urbano, ignorando recomendação da Promotoria de Urbanismo da Capital, resolveu aprovar a construção de cinco torres em plena Rua da Aurora, às margens do Capibaribe, no centro histórico da cidade, um dos cartões postais do recifense. Duas torres terão 47 andares e as outras três, 36 andares. Sim, a construtora beneficiária de mais esse “aprovo” do CDU é a já mais que conhecida Moura Dubeux. O Memorial de Impacto da obra, que foi considerado satisfatório pelos membros do CDU, muitos deles notáveis da área, para justificar a aprovação daquela verdadeira agressão ao nosso patrimônio urbanístico, histórico e cultural, não poderia trazer maior simbolismo do que representa a gestão Geraldo Júlio para nossa cidade, em termos do mais gritante higienismo, tudo previamente planejado pelo comandante Eduardo e seu “staff”, pois a cidade deve esconder seus pobres e suas mazelas para debaixo do tapete, afinal, a Copa e a mídia internacional vêm aí.
O tal Memorial da Moura Dubeux, aprovado pelo CDU de Geraldo Júlio e Braga, flerta com o cinismo e debocha de grande parte do povo recifense que vive numa das capitais brasileiras onde o IBGE detectou, no último censo, dos maior índices das chamadas unidades subnormais, ou seja, de mocambos e favelas. Leiam: "Certamente esse tipo de impacto será benéfico, tanto para quem olhar de dentro do empreendimento, sendo possível observar a área de fora do empreendimento e à medida que forem sendo considerados os últimos pavimentos, os moradores terão uma visão privilegiada da cidade, promovendo qualidade de vida. Considerando quem olhar de fora, poderá contemplar as características arquitetônicas do edifício, o que antes da implantação não seria possível".
Observem que para os privilegiados que pagarão em torno de R$ 500 mil por uma unidade nas Torres aprovadas pelo CDU de Geraldo Julio e Braga, o impacto será benéfico, pois terão, sem sombra de dúvidas, uma das visões mais privilegiadas da cidade: a da Rua da Aurora e do Rio Capibaribe. Mas para o restante da cidade, o que restará será olhar para o privilégio dos privilegiados pela gestão Geraldo Júlio e a isso o CDU considerou um impacto altamente positivo para a cidade. Por quem nos tomam, afinal?
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