Por Noélia Brito, advogada e Procuradora do Recife
O mês de fevereiro de 2014 ficará marcado em nossas memórias pela banalização do mal. Foi em fevereiro de 2014 que vimos, em uma espécie de sequência bizarra, a que ponto chegou a barbárie de uma sociedade que se pretende moderna e civilizada.
Enquanto jovens são despidos e amarrados a postes, pelo pescoço, por pretensos e pretenciosos “justiceiros” e crianças são espancadas por seguranças de lojas pela simples suspeita trazida, seja pela cor de suas peles, seja por sua condição social, de serem bandidos, vemos um Congresso dominado por Renans, Collors, Sarneys, Bolsonaros, Eduardos Cunha, em polvorosa, para aprovar uma Lei Antiterrorismo, cuja finalidade é, tão somente, criminalizar os movimentos sociais, aproveitando-se, oportunisticamente, da morte trágica de um pai de família, durante um protesto, ao mesmo tempo que fazem vista grossa para tantas outras mortes das vítimas do terrorismo de Estado, que eles mesmos patrocinam.
Nos presídios e nos centros de reeducação de menores, persistem os assassinatos com requintes de crueldade, torturas, decaptações, o abominável, o impensável. E tudo sob a tutela e vigilância complacente do Estado.
O que nos resta, alguns hão de pensar, é o recesso dos nossos lares. A tranquilidade da vida em família. Mas não, ledo engano, pois nem ali há paz para milhares de crianças e mulheres, vítimas da violência, aliás, principalmente ali, não há paz para esses milhares de crianças e mulheres, já que é justamente na intimidade da vida doméstica que a violência se mostra mais presente e perversa.
Durante o último fim de semana fomos surpreendidos pelo brutal assassinato da professora Sandra Fernandes e de seu filho Icauã. Sandra, que era uma militante do Movimento Mulheres em Luta, que tem como uma de suas principais bandeiras, justamente o combate ao machismo, foi vítima, juntamente com seu pequeno Icauã, dessa chaga social que tanto combateu. Ambos foram mortos pelo machismo que mata 40% das mulheres vítimas de homicídio no mundo. Sim, porque nada menos que 40% dos homicídios praticados contra mulheres, no planeta, decorrem de conflitos de gênero, ou seja, a mulher é morta pelo simples fato de ser mulher.
A justificativa do assassino de Sandra para ceifar-lhe a vida? O Ciúme. O que leva alguém a creditar-se o direito de tirar a vida de outrem por ciúme? A resposta não pode ser outra que não seja a coisificação do indivíduo, no caso, da mulher, que nada mais significa, para o assassino, que um bem, do qual pode dispor a seu bel prazer a ponto de matá-lo.
O machismo, porém, não é um fenômeno patológico, a ser tratado por psiquiatras e terapeutas. Antes fosse. Assim como a homofobia, que é uma das facetas do próprio machismo e o racismo, o machismo é um fenômeno social, de classe, de dominação e como tal tem que ser tratado e combatido mediante políticas públicas efetivas porque traz consequências gravíssimas que as páginas policiais não permitem aos governos esconder.
Para se ter uma rápida noção do quanto é grave e acentuado o machismo em nossa sociedade, levantamento feito pelo IPEA, somente na última década, concluiu que, no Brasil, uma mulher é morta a cada uma hora e meia, por causa do machismo. Foram cerca de 50 mil feminicídios, entre 2001 e 2011, ou seja, algo em torno de 5.000 mulheres assassinadas por ano, pelo simples fato de serem mulheres. 470, por mês e 15, por dia, exclusivamente por causa do machismo. Em pelo menos um terço desses homicídios, o local onde se deu a morte foi no próprio domicílio da vítima, o que demonstra que o lar é um lugar extremamente perigoso para muitas mulheres.
As regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste engrossam as estatísticas dos homicídios praticados por machismo e os Estados do Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Roraima e Pernambuco encabeçam a lista dos feminicídios. As mulheres negras são as maiores vítimas desse tipo de crime (61%), principalmente no nordeste, onde esse índice chega aos 87% de incidência.
O lar, conforme dissemos anteriormente, é tão perigoso para as mulheres quanto a rua, do ponto de vista do machismo, pois, enquanto 29% dos feminicídios ocorreram no domicílio, 31% acontecem em via pública e 25% em hospital ou outro estabelecimento de saúde. Nos finais de semana ocorrem 36% dos feminicídios, enquanto os domingos concentraram 19% das mortes.
A pesquisa do IPEA revela, entretanto, que a entrada em vigor da Lei Maria da Penha em nada colaborou para a diminuição da violência contra a mulher, notadamente se considerarmos os casos de feminicídios. A pesquisa revela que antes da Lei Maria da Penha (2001-2006), as taxas de mortalidade por 100 mil mulheres foram de 5,28, enquanto que depois dela (2007-2011) foram de 5,22.
Ora, todos sabemos que o que mais existe no país são leis, o que faltam, porém, são políticas públicas efetivas, principalmente políticas voltadas à proteção das pessoas em situação de risco e políticas voltadas à redução das desigualdades de gênero, de classe e à educação do povo. Por que digo que faltam políticas públicas, se o que mais se vê são anúncios pelo governo federal e pelos governos estaduais e municipais de programas e projetos destinados à implementação dessas políticas?
Simplesmente porque a criação de projetos apenas no papel, sem recursos e sem sua efetiva implantação nada mais é que jogo de cena e golpe de marketing com finalidades eleitoreiras que apenas contribuem para a manutenção do estado de caos social em que nos vemos mergulhados.
O que de efetivo tem sido feito para combater o machismo que levou à morte 50 mil brasileiras nos últimos 10 anos, por exemplo? Qual foi a posição da Secretaria da Mulher de Pernambuco no recente episódio em que o ex-secretário de Defesa Social, Wilson Damásio defendeu estupradores no seio da própria polícia, colocando a culpa numa absurda atração que as vítimas teriam pela farda dos algozes? Que campanhas educacionais foram desencadeadas pelos governos em todas as esferas, para combater a atitude e o pensamento nazista dos que defendem linchamentos em praça pública de negros e pobres, por aqueles que se auto-intitulam vingadores do “cansei”?
A resposta todos sabemos que é a mais absoluta omissão e é essa omissão que é responsável pela manutenção e crescimento da barbárie. O governo omite educação para depois servir repressão como solução. Esse é o único Pacto pela Vida que tem sido oferecido para o povo. Um pacto que leva à morte, inclusive à morte de nossas almas.
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